Many thanks to Carlos Robalo of Torres Vedras for providing this information.
-- KLG

DE TURRES VETERAS A TORRES VEDRAS
Estudo Etimológico
do Prof. Jaime Umbelino
Torres Vedras, MCMXCIV

Tal como acontece com muitas outras povoações do nosso País, a História não nos deu, até hoje, dados absolutamente concretos sobre a origem da antiga povoação, que chegou aos nossos dias com o nome de Torres Vedras, que lhe foi imposto pela ocupação romana, e que é a nossa Cidade. Aventa-se a hipótese de terem sido os túrdulos os seus fundadores, mas desconhece-se qual a data dessa fundação e qual tenha sido o seu nome de origem. Autores antigos identificam-na com uma velha Arandis, anterior à ocupação romana. Mas os problemas da sua origem e do seu primitivo nome, vamos deixá-los para os historiadores, porque o nosso intento é limitarmo-nos a uma pequena dissertação sobre a única coisa que, sem sombra de dúvida, se pode categoricamente afirmar: a actual designação de Torres Vedras, por que é conhecida a nossa Cidade, deve-se à dominação romana da Península Ibérica, na sequência das guerras púnicas, sendo, portanto, latinos os étimos que estão na base da sua evolução, evolução que, sendo, aliás, bastante fácil, tem sido desabridamente maltratada e tem levado a afirmações inconscientemente ousadas e a confusões muito lamentáveis.

Vamos, pois, dar início à nossa dissertação começando por assinalar e salientar um facto com que deparámos, no decorrer de leituras que fizemos: tem-se feito uma grande baralhada entre a origem da povoação e a origem do seu nome. E certos autores não se têm apercebido de que, se é difícil, ou mesmo quase impossível, explicar a primeira, não há nada de difícil na explicação da segunda. É esta explicação que, dentro dos nossos limitados conhecimentos filológicos, vamos tentar fazer, o mais claramente que nos for possível, antecedendo-a de algumas notas extraídas das obras que nos foi dado ler, notas que são uma prova evidente da baralhada a que aludimos. O Pe. António Carvalho da Costa, numa sua obra a que chama Corografia Portuguesa, dedicada à Rainha Maria Ana de Áustria, e publicada em 1709, tem, no livro segundo, tratado I - Da Comarca da Villa de Torres Vedras, capítulo I - Da descrição desta Villa: “No Arcebispado de Lisboa, sete legoas desta cidade para o Norte, & cinco ao nascente da Villa de Peniche, em logar baixo que cercam cinco montes, tem seu assento esta nobre Villa, a que os Godos e Suevos chamaram antigamente Turres Veteres (para diferença da Villa de Torres Novas) que é o mesmo que Torres Velhas, de que ainda hoje existe huma ára a parte do castello...”.

João Maria Baptista, na Chorographia Moderna do Reino de Portugal, publicada em 1876, diz, na página 801, do volume IV, o seguinte: “O nome de Turres Veteres foi-lhe dado provavelmente pelos Godos, e esse mesmo nome traz consigo a idéa de remota antiguidade”.

Pinho Leal, no Portugal Antigo e Moderno, publicado em 1880, no artigo dedicado a Torres Vedras, diz: “O que é certo é ser Torres Vedras uma povoação antiquíssima, e que, com toda a certeza, já existia no tempo dos romanos, o que se prova por quatro lápides com inscrições latinas, achadas nas suas vizinhanças, e das quais ainda existem trez - duas na Quinta da Rainha, freguesia da Carvoeira - e uma, embebida na parede exterior da egreja matriz de Mata-cães. É provável que fossem os romanos que lhe dessem o nome Turres Veteres, que os Godos e Árabes lhe conservaram, e que ainda tem, traduzido em portuguez “.

E acrescenta esta nota, em fim de página: “não sei a razão porque (sic) a esta villa, sendo muito mais moderna que Torres Novas, se lhe dê o nome de Torres Vedras (Torres Velhas) “.

Alberto Pimentel, no Portugal Pittoresco e Ilustrado. A Estremadura Portuguesa , 2ª parte, 1908, diz, na página 56: “Os romanos já encontraram povoação, e decerto a fortificaram de novo. Os Godos denominaram-na - Torres Velhas - certamente por a acharem bem defendida com muralhas e torres “. A Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, na página 278, começa um extenso artigo dedicado a Torres Vedras, donde respigámos o seguinte: “...de todo este modo é claro que a região foi bastante romanizada e a sua população deve ter sido nesses tempos relativamente densa. Serão talvez dessa época e de alguma pov. (que parece ter existido aí) as “turres veteres” que originaram o topónimo Torres Vedras. Os autores que se ocuparam desta vila, ignorando os princípios científicos do método glotológico, reputaram o termo “vedras” do topónimo uma “corrupção” popular do termo “velhas” (entre aqueles conta-se Madeira Torres, séc. XVIII-XIX) quando a verdade é outra: trata-se do próprio termo arcaico “vedras” estereotipado, directamente proveniente, se não do topónimo, ao menos no uso comum, do lat. veteres (ac. turres). Apesar da inteira possibilidade, nada haverá que prove que o topónimo Torres Vedras provém directamente do latim Turres Veteres - ou por outra, nada pode afiançar que Turres Veteres tivesse sido topónimo. O qualificativo “vedras” envolve um sentido impreciso, isto é, não pode decidir-se se relativo, se absoluto. No caso de relativo, existiam na região outras “torres” por isso “novas”, na época da fixação toponímica, mas é aventuroso pensar precisamente na vila de Torres Novas, que fica bastante longe. Num ponto de vista absoluto, que é o mais aceitável, “vedras” significa tão somente a alta antiguidade manifesta e, então, com o auxílio da arqueologia, será dado supor-se que Turres Veteres foi, realmente, o nome do local e sua pov. evoluindo, pois, na função toponímica, para Torres Vedras. E assim se estereotipando...”.

Memórias de Torres Vedras, colecção de textos de vários autores, editada pelo Governo Civil de Lisboa, abre com um escrito de A. Vieira da Mota, publicado no jornal O Torriense, e diz no primeiro parágrafo: «O nome portu-guês, dado a esta vila, indica claramente uma corrupção do antigo Torres Velhas, derivado do latino Turres Veteres com que os povos bárbaros, invasores das Espanhas, a denominavam». Em fim de página, como “nota da redacção”, lê-se: «Ao invés, Torres Vedras representa a evolução normal do topónimo latino Turres Veteres, expres-são que, em vernáculo significava “Torres Velhas” ».

Nesta nossa enumeração de autores e obras, deixámos para o fim, e num lugar de destaque, Madeira Torres e Júlio Vieira porque, é necessário acentuá-lo, tem sido a leitura dos seus escritos, tão impregnados de boas intenções e louvável bairrismo, a causa dos maus tratos a que, sob o aspecto etimológico, as actuais “Torres Vedras” têm sido sujeitas, pela ignorância de uns e pela inconsciência de outros.

Madeira Torres, na sua Descripção Histórica e Económica da Villa e Termo de Torres Vedras, precisamente na parte histórica, capítulo I, trata do nome e situação de Torres Vedras: “O nome portuguez, actualmente dado a esta villa, indica com bastante clareza uma corrupção do antigo Torres Velhas, derivado do latim Turres Veteres, com que os povos bárbaros a denominavam...”. Júlio Vieira, na sua obra Torres Vedras Antiga e Moderna, depois de várias considerações sobre as origens da vila e do seu nome, diz, na página 4: “Torres Vedras ou Turres Veteres é uma corrupção do latim Turribus Veteribus (Torres Velhas) ou Turris (sic) Veteribus, por que era conhecida no tempo dos romanos...”.

Antes de iniciarmos os comentários às afirmações destes dois autores, temos o dever (gostoso dever) de proclamar, alto e bom som, que eles em nada pretendem ofuscar o inestimável mérito das suas obras: elas são um fértil tesouro de preciosas informações que muito contribuem para que se saiba alguma coisa sobre a história da nossa terra, que, sem elas, mais mergulhada estaria em denso nevoeiro de cerrada obscuridade.

O primeiro, apetrechado com o “seu” latim eclesiástico mas, como não podia deixar de ser, naquela época, completamente leigo em matéria de filologia, diz: “...Torres Velhas, derivado do latino Turres Veteres...”. Ora, se é certo que “Torres” derivou de Turres, “Velhas” não podia, de forma nenhuma, derivar de Veteres. Seria precisa uma corrupção demasiado violenta para fazer surgir o grupo palatal lh e a vogal a, e só uma corrupção mirabolante poderia levar “Velhas” a Veteres, segundo a imaginação do autor.

O nosso vocábulo “velho”, com o seu feminino “velha”, é o resultado da evolução do adjectivo latino da 1ª classe, portanto triforme, veculus, vecula, veculum, alternante, com inteira certeza, de vetulus, vetula, vetulum, criado a partir de vetus, veteris, com os sufixos ulus, ula, ulum (na língua latina correspondentes ao nosso sufixo inho, com o significado de carinho ou afecto). Veculus, forma alternante de vetulus, significava, em latim, o velhinho. Do seu acusativo veculum, com a apócope do m final, a síncope do u medial e a consequente palatalização do grupo cl > lh, resultante da tal queda do u, chegámos, muito naturalmente e sem o mais pequeno odor de corrupção, ao nosso actual “velho”, cujo plural feminino - “velhas”-, vai entrar no composto “Torres Velhas”. Vemos, portanto, que velho e velha só têm de afinidade com veteres o facto de serem a evolução de uma forma alternante de vetulus.

Feito este comentário etimológico, é forçoso dizermos que a notícia histórica também carece de um esclarecimento: os povos bárbaros, ao invadirem as Hespanhas, já encontraram o nome latino Turres Veteras com que continuaram a denominá-la. Se fossem eles a dar-lho, tê-lo-iam feito na sua língua e não na dos romanos, que submetiam ao seu domínio. Quanto ao segundo dos autores citados, sem o mínimo conhecimento de latim e de Filologia, ainda a informação é mais arrepiante: corrupção alguma, por mais violenta que fosse, conseguiria fazer chegar o ablativo Turribus Veteribus a “Torres Vedras” ou Turres Veteres , como ele diz, acrescendo ainda que, no nosso léxico, tanto quanto sabemos, não há notícia de topónimos derivados do ablativo. Por outro lado, a existência do par Turris Veteribus é absolutamente inaceitável por ser constituído por casos inteiramente diferentes. Contudo, a informação histórica de Júlio Vieira “...por que era conhecida no tempo dos romanos”, está inegavelmente certa. Parece que podemos, enfim, começar a concretizar o nosso objectivo: tentar explicar, à luz da etimologia, a origem e respectiva evolução do topónimo Torres Vedras, nome com que os romanos, após a sua fixação na Península Ibérica, passaram a designar a nossa cidade, enquanto a história nos não provar o contrário.

Para exprimirem a ideia de velho, tinham os romanos os nomes vetulus, vetuli, masculino da 2ª declinação; vetula vetulae, feminino da 1ª declinação; vetus, veteris, neutro da 3ª declinação; e ainda vetulus, vetula, vetulum, adjectivo triforme da 1ª classe, cuja criação explicámos acima, e que alternava com veculus, vecula, veculum, como já dissemos. Contudo, se nos debruçarmos sobre o actual léxico português, e também espanhol, deparamos com curiosas formas estereotipadas, cuja explicação etimológica nos obriga a enveredar por um outro caminho...

Se atentarmos, por exemplo, em Torres Vedras, Alhos Vedros, Pontevedra, temos de concluir que as formas adjectivas “Vedras”, “Vedros”, e “Vedra”, não encontram a sua explicação etimológica senão a partir de uma raíz comum que só podemos encontrar no adjectivo latino vetus, veteris. Porém, somos levados a pensar que o uso do vocábulo vetus, veteris, talvez pela sua natureza erudita, não devia estar muito ao alcance das pessoas menos cultas. Assim, utilizando as leis da derivação e a força da analogia, sempre inerentes à plasticização das línguas vivas, foi criado, com toda a certeza, a partir de vetus, um adjectivo da 1ª classe - veterus, vetera, veterum - que, pela sua contextura, se enquadrava perfeitamente nos moldes dos adjectivos do tipo bonus, bona, bonum, de uso corrente, portanto, mais familiar. E foi assim que assentou arraiais no léxico latino, embora condenado a uma vida efémera, o sonoroso neologismo, veterus, vetera, veterum.

Verificamos, porém, que, no decorrer dos tempos, os povos latinizados deram preferência ao seu irmão mais velho veculus, vecula, veculum (alternante de vetelus, vetula, vetulum), de cariz mais popular, e foram pondo de parte o jovem veterus, vetera, veterum, que acabou por ser preterido, conservando o ar da sua graça apenas em vocábulos que a escrita, conservadora por natureza, já tinha fixado, tais como (que se nos perdoe a repetição!) Torres Vedras, Alhos Vedros, Pontevedra, considerados formas estereotipadas. Temos de deduzir, por conseguinte, que estão erradas as explicações dadas até agora (nalguns casos teimosamente) para a proveniência do segundo elemento do par de vocábulos com que designamos a nossa cidade - Torres Vedras.

Quanto ao primeiro elemento, a afirmação tem validade: Turres > Torres ( u > o ), como cursu- > corso, rumpere > romper, nura- > nora, etc., etc. Então... como poderíamos chegar da forma adjectiva latina, vetus, veteris, a “vedra” (Pontevedra), a “Vedros” (Alhos Vedros), ou a “Vedras” (Torres Vedras)? De modo nenhum porque, como é neutro, o adjectivo vetus tem, como acusativo do plural, as formas veteres (para o masculino e o feminino) e vetera (para o neutro), que, de modo algum, poderiam chegar a “vedros”, “vedras” ou “vedra”. Isto porque veteres só poderia evoluir para vedres, e vetera, sendo um acusativo neutro do plural, nunca poderia emparceirar, nem no caso nem no género, com pons, pontis, que no latim era masculino. O francês conservou-lhe esse género (Le pont), mas o espanhol, ao formar o vocábulo Pontevedra, fez-lhe, tal como o português, a operação da mudança... Para respondermos cabalmente à pergunta, temos de recorrer ao já historiado veterus, vetera, veterum.

O seu acusativo singular feminino - veteram - deu a forma “ vedra”; o mesmo caso masculino do plural - veteros - deu “vedros”; finalmente, o seu acusativo feminino do plural - veteras - deu “vedras”.

Foneticamente, todos sofreram a sonorização do t e a síncope do e medial. Em “vedra”, além destes dois fenómenos, deu-se ainda a apócope do m final, fenómeno já generalizado na Itália quando os romanos se fixaram na Península Ibérica.

Estamos certos de que não erramos, ao afirmarmos que foi assim que se chegou a estas formas - “vedra”, “vedros”, “vedras” - , que a escrita fixou nesse estádio da sua evolução, tornando-se, por isso, estereotipadas. Assim... sujeitemos veteres e turribus veteribus, no que respeita às suas relações etimológicas com Torres Vedras, à lei do ostracismo. Deixemo--los em paz e entregues às funções que desempenhariam sob aquelas formas e, dando a César o que é de César, fujamos às adulterações, na certeza de que o caminho certo é: TURRES VETERAS > TORRES VEDRAS