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MISSIONÁRIOS DO OESTE

FREI DANIEL DA CRUZ

Naturalista Insigne

Por David Azevedo (um contemporâneo de Daniel da Cruz, escrito por volta de 1966)

A nossa região do Oeste usufruiu, nos finais do século passado e princípios deste, da influência de dois notáveis focos, não só de vida cristã, mas também de cultura, que foram o convento de Varatojo e o convento de S. Bernardino, o primeiro reaberto em 1861 e o segundo, em 1884. No primeiro fundaram os franciscanos a primeira escola primária do concelho de Torres Vedras, em 1866, logo seguida dum colégio para meninas. No segundo, que formalmente destinado a colégio seráfico ou seminário menor da Ordem Franciscana, também logo se abriu, após a sua aquisição, uma escola primária para os rapazes das localidades vizinhas. Os dois focos, naturalmente, atraíram a atenção das famílias, da região de Torres Vedras, para Varatojo, e da região mais ao norte, desde as encostas do Montejunto até ao mar, para S. Bernardino. Neste contexto brotou a vocação franciscana de mais um missionário do Oeste, Frei Daniel da Cruz.

Nasceu no Vilar, no dia 1 de Março de 1880, filho de João da Cruz Narciso e de Joana das Dores; e lá foi baptizado com o nome de Manuel Maria. Vestiu o hábito franciscano em Varatojo, no dia 25 de Setembro de 1896 e professou no dia 30 de Novembro de 1897, com o nome de Frei Daniel da Cruz. A meio dos estudos de filosofia e teologia, que começou em S. Bernardio e, a partir de 1900, continuou em Montariol (Braga), forçado pelas perturbações causadas pelo decreto de Hintze Ribeiro, de 10 de Março de 1901, que reactivou a animosidade anticongreganista de liberalismo, refugio-se em Espanha, com outros companheiros, onde prosseguiu os estudos na província franciscana da Bética (Sevilha). Ordenado sacerdote em 1904, em 1 de Outubro de 1906 embarcou para Moçambique, chegando à Beira no dia 4 de Novembro. No dia 8 do mesmo mês foi colocado como coadjutor na recém-criada missão de Congoene (Xai-Xai), em terras de Gaza.

Não foi longa sua demora no campo missionário, porquanto, devido à agressividade do clima e à falta de recursos médicos, pouco mais de um ano passado em Moçambique, em 1 de Janeiro de 1908, doente, teve de regressar a Portugal. Mas se escasso foi o tempo, grande foi o seu empenho, não só na evangelização, mas também — e principalmente — no campo da ciência. Inteligente, observador e apaixonado pela natureza, dedicou-se ao estudo dos costumes indígenas e das requezas naturais do mundo que o rodeava. Desse estudo resultou uma série de artigos que pouco a pouco foram aparecendo na Gazeta das Aldeias[1], que se publicava no Porto, os quais foram mais tarde publicados em livro, intitulado Em Terras de Gaza, Porto 1910[2].

Dos seus conhecimentos africanos e da bagagem científica que adquirira no currículo de formação, pela mesma altura — 1905-1910 — vêm a lume, na revista franciscana, a Voz de Santo António[3], uns cinquenta artigos sobre os insectos. O bicho da seda, as borboletas, os grilos, as abelhas (cinco artigos), as cigarras, os ralos, as libélulas, os myrmeleões, as formigas (sete artigos), os escaravelhos, as carochas, as joaninhas, os morilhões, as moscas, os mosquitos, as vespas, os cynipes, os gafanhotos, as lagartas, as baratas, as aranhas, as pulgas e outros bichos de espécie, formam variegada e encantadora exibição nas páginas da revista. O campo científico de Frei Daniel da Cruz, dir-se-ia que não tem limites. Aparecem na referida revista artigos sobre a estrumeira, a agricultura, a higiene rural, a raiva, os terramotos (a propósito do terramoto de Messina) e ainda os trens Renard (sistema de transporte em estrada com locomotiva e vários atrelados), além das recensões de livros e revistas.

Em 22 de Outubro de 1910, poucos dias depois da implantação da República, refugia-se nos Estados Unidos, onde virá a abandonar o sacertdócio e a vida franciscana. Continuou, porém, sua paixão científica. Frequentou a Faculdade de Ciências da Universidade Católica de Washington, onde se graduou em 1915. Para efeitos de doutoramento apresentou o estudo intitulado A Contribution to the the life-history of Lilium Tenuifolium. Foi professor na Universidade de Princetown [sic] e publicou vários livros. Muito embora sua vida tivesse enveredado por rumos diferentes daqueles que iniciara como franciscano, manteve sempres um espírito liberal, característico aliás da escola franciscana de Montariol e da revista Voz de santo António, o encanto franciscano pela natureza e a inquietação e busca de Deus. Veio a falecer em 27 de Dezembro de 1966, no Estado de Colorado. Figura notável que merece ser mais conhecida, principalmente na nossa região.

D. A.

O texto de Frei Davide Azevedo com dados biográficos de Daniel da Cruz terá sido publicado em 1968, num livro comemorativo do centenário da acção missionária em Moçambique da Ordem Franciscana. Então, em 1968, Frei Davide Azevedo (faleceu em 2013 com 90 anos) disse que pretendia publicar, em livro, uma biografia mais extensa de Daniel da Cruz porque no livro das comemorações a biografia teria de ser reduzida para conter biografias de mais de 200 missionários. —Raimundo (da Cruz) Narciso, 8 Nov 2017.
References:
  1. Gazeta das Aldeias (em Google Books).
  2. Fr. Daniel da Cruz, Em Terras de Gaza, Porto: Gazeta das Aldeias (1910), 312pp, 90 ilustrações.
  3. Voz de S. Antonio, Revista Mensal Illustrada, 1895-1910. Numerosos artigos de Daniel da Cruz, às vezes assinados como P.e D. da Cruz, outros simplesmente como "D.C." ou com um pseudônimo como Lucano. Muitos desses artigos são profusamente ilustrados.