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Lembranças de Vilar

Olá Frank, Danny, Lina e demais primas e primos. Venho dar-vos mais alguma informação sobre o Vilar e o ramo vilarense da família Da Cruz
Raimundo Narciso
Lisboa, 2018-01-16

Vilar - anos 50 do séc XX

O povo da aldeia vivia da agricultura. Quase toda a terra agrícola era de vinha ainda que também houvesse algumas sementeiras de cereais e hortas. O Vilar vivia do fabrico do vinho!

Os únicos lugares de convívio para homens eram as tabernas onde se bebia vinho. Os homens da nossa família não eram frequentadores das tabernas. O meu pai, Manuel, frequentava uma tertúlia, três ou quatro amigos, que se reuniam à noite a conversar na farmácia com o dono seu amigo.

As mulheres ocupavam-se da vida doméstica e frequentavam a igreja, muitas delas uma, duas ou três vezes ao dia.

Como era o convívio dos jovens ou como se namorava no Vilar, nos anos 50?

As raparigas e os rapazes ao domingo de tarde passeavam em linha a toda a largura da estrada, 200 metros para cima 200 metros para baixo. O grupo das raparigas cruzava-se com o dos rapazes e olhavam-se e dirigiam uma ou outra palavra simpática, por vezes paravam um pouco e conversavam em grupo. A estrada que ligava o Cadaval a Torres Vedras e a Lisboa tinha um trânsito de um carro por hora!

Line of girls
Linha de raparigas, Vilar, cerca de 1956. Da esquerda à direita: 4. Maria do Carmo (Micá); 7. Teresa Nobre Santos; 8. Helena Maria Narciso.

Além destes passeios, e dos encontros à saída da missa, havia no verão, no largo maior da aldeia, os bailes por ocasião das festas religiosas anuais do Vilar e das aldeias próximas. Uma orquestra tocava num coreto, umas valsas, uns tangos, uns "viras", umas músicas "slows" e os jovens e os menos jovens dançavam ou assistiam.

Picnic group
Raimundo 1º esquerda, irmã Helena ao centro
Havia também, muito apreciados, no verão, os passeios a pé, à serra (uns 3kms). Mais frequentes eram os picnic nos pinhais próximos.

Olhares trocados, umas poucas palavras trocadas, uma ou outra dança, bem agarradinhos, no baile da festa religiosa e estava o caminho aberto para o namoro. Então o candidato ao amor da jovem virgem dirigia-se ao pai da rapariga e "pedia-lhe a sua mão". O pai avaliava a situação, se o rapaz convinha ou não para marido da filha, se tinha terras ou não e, se dava o consentimento, começava o namoro a sério. À janela. A rapariga à janela de sua casa e o rapaz na rua. Passado um tempo de ava-liação e se o caminho andado prenunciava casamento então o namoro podia continuar à porta. A rapariga do lado de dentro da porta e o rapaz da parte de fora e, dentro de casa, afastada, numa cadeira deveria estar a mãe da jovem a vigiar a tentação do pecado, assegurando o bom comportamento dos namorados.

15 ou 20 anos depois tudo isto tinha mudado.

A economia

A propriedade agrícola estava muito distribuída e a diferença entre "ricos" e "pobres" era pequena. Nada que se comparasse com a situação do CEO da McDonald que, segundo estudo da Bloomberg, ganhava em 2012, 644 vezes mais do que a média dos milhares dos seus trabalhadores. ) Havia no Vilar um pequeno número de marginalizados que viviam na periferia da aldeia.

As vindimas, a colheita da uva, para ser transformada em vinho, nos vários lagares da aldeia, que ocorriam em Setembro e Outubro, constituíam o momento de maior labor, agitação e alteração da rotina. Acorriam à terra muitos assalariados agrícolas vindos das regiões mais pobres do país para a grande azáfama das vindimas. Viviam pobremente, em locais impróprios, facultados pelos proprietários das vinhas que os empregavam durante este período.

A nova igreja

Uma das maiores mobilizações de toda a aldeia ocorreu para a construção da igreja que substituiu a pequena capela então existente. Trabalho voluntário durante meses ou anos, e donativos dos conterrâneos, foi inaugurada em 1953. Manuel também se solidarizou e contribuiu com dinheiro mas, como ateu assumido, único na aldeia, explicou que era para o grande relógio da torre, cujas badaladas, hora a hora, guiava os camponeses sem relógio pelos campo fora.

Os irmãos da Cruz Narciso

Manuel tinha muito apreço pelo seu irmão Daniel e correspondiam-se com frequência. Quando Louise o visitou em 1971, pouco tempo antes de morrer, e o encontrou muito envelhecido ele estava muito doente com cancro (cancer).

O relacionamento de Manuel era bom com todos os irmãos. O maior e mais estreito era entre Manuel e a irmã Maria da Cruz, que se visitavam com frequência. Ela morava a 10 kms a norte do Vilar, na Ermejeira, e passava de vez em quando um ou dois dias em nossa casa. De Inverno, ao serão, em volta da braseira, contava-nos a mim e a minha irmã histórias de encantar, histórias do Vilar da sua juventude. Outro relacionamento muito frequente havia entre Manuel e o seu irmão Francisco e os seus sobrinhos Diniz e Francisco e suas sobrinhas Alice, Madalena e Luzia, pouco mais novos que o tio Manuel. Bom relacionamento apesar de ideias políticas muito opostas. Gostavam de discutir política e os desenvolvimentos da 2ª Guerra Mundial.

Anos 60 /70 do séc XX

A nossa tia freira, Maria José (Maria do Santo Lenho) também nos era próxima afectivamente. Visitei-a várias vezes quando estudava em Lisboa e fui despedir-me dela quando, em 1964, passei à clandestinidade. Disse-lhe que ia para a Alemanha e ela afirmou-me que rezaria por mim o que lhe agradeci e mais tarde concluí ter sido o seu empenho junto do Altíssimo que me protegeu da polícia política e impediu que a PIDE me conseguisse encontrar .

Raimundo PIDE photo
Foto PIDE
A PIDE colocou a minha fotografia (ao lado) nos jornais e na Televisão (7 de Julho 1973) procurando encontrar-me. Era uma foto antiga e pouco parecida comigo então a usar barba e óculos sem graduação para me disfarçar. Em seguida a Maria Machado foi a casa da nossa vizinha Irene, com um falso pretexto para ver se ela me teria reconhecido. Era uma professora no convento de Odivelas, 60 anos, muito católica e para quem Salazar fora um Santo. Vivia só, procurava o nosso convívio que controlávamos ao milímetro, gostava muito da nossa filha Leonor para quem trazia sempre um chocolate ou uma flor.

- D. Helena (era o nome que a Maria Machado usava naquela casa clandestina e que alugáramos com nomes falsos, já se sabe!) sente-se aqui - e leu-lhe o comunicado da PIDE que vinha no jornal Diário de Notícias. Está a ver? Terroristas!! Olhe este aqui Jaime Serra, operário quer ser ministro! E este aqui, Raimundo Narciso, estudante universitário, anda enganado!

Em 1972 vários agentes da PIDE invadiram a casa dos meus pais, no Vilar. Manuel já tinha falecido há uns meses. A minha mãe vivia só e muito triste, sem saber do filho e com a filha em França. Ficou assustadíssima, os agentes da PIDE revolveram a casa e fizeram-na assinar uns papéis. Os vizinhos, depois, ainda mais a assustaram dizendo-lhe que seguramente não era a polícia mas malfeitores e os papéis que assinou não seriam a dizer que lhes tinha vendido as terras e a casa!? A minha mãe, com ingenuidade e muita coragem foi a Lisboa à sede da PIDE certificar-se e exigir explicações!

Está tudo escrito com pormenor no livro que publiquei em 2000, ARA - Acção Revolucionária Armada.